Tecnologia por quê, mesmo?

A edição 97 da revista A Rede vem com um artigo meu na seção raitéqui. Publico abaixo a versão original do artigo, um pouquinho mais extensa. A revista traz também uma matéria sobre internet das coisas com algumas citações a provocações que eu fiz em conversas com a Áurea.

Como grande parte dos desenvolvimentos contemporâneos, as tecnologias da informação chegam em diferentes ritmos e disposições a grupos sociais diversos. Para alguns, parecem significar a libertação das amarras de uma sociedade pós-industrial cuja nova configuração é fragmentada e baseada nos fluxos em múltiplas direções. Estes privilegiados acreditam que, a partir do uso instrumental das novas tecnologias, podem chegar a criar espaços de liberdade e autonomia, ao mesmo tempo em que valorizam novas formas de sociabilidade e de criação do comum. Para eles, o horizonte é repleto de oportunidades inovadoras, com a promessa de mercados à espera de boas ideias e que ao mesmo tempo produzem conhecimento que é generosamente oferecido à sociedade. Para outros, a chamada era da informação não passa de um conjunto de expectativas relativamente nebulosas que usualmente são traduzidas somente no incremento de suas oportunidades de consumo (preferencialmente com um simultâneo aumento em sua capacidade de endividamento). Com frequência, nem isso acontece: a tecnologia costuma ser usada somente como instrumento de controle, monitoramento e contenção de desvios.

O complexo que faz girar a internet comercial trata estes dois extremos da mesma forma: como combustível indiferenciado de uma máquina baseada na exploração do valor das relações sociais, inclusive as comunicações particulares que acreditamos serem privativas. Para essa articulação entre as corporações de TI, a indústria da publicidade e do entretenimento (que compõem uma só área integrada, não esqueçam) e, implicitamente, o setor militar e de "inteligência", qualquer uso das tecnologias que proponha transformações profundas na sociedade deve ser neutralizado o mais rapidamente possível.

Esse contexto é cada vez mais evidente em uma época que já testemunhou manifestações de rua - em grande parte articuladas pela internet mas posteriormente instrumentalizadas pela mídia corporativa -; revelações de nomes como Julian Assange e Edward Snowden que sugerem a ampla utilização de redes sociais para informar instituições dedicadas à espionagem e controle de informação em nível internacional; além das incessantes tentativas de controlar as liberdades fundamentais à internet como instrumento de comunicação humana.

No mês passado, um post de Anahuac de Paula Gil [http://www.anahuac.eu/?p=335] levantou uma discussão importante a respeito do possível esvaziamento do movimento software livre brasileiro. Ao longo da última década e meia, o país alcançou destaque internacional decorrente do apoio institucional ao software livre e à cultura livre. O tempo mostrou que grande parte desse apoio era mera retórica ou oportunismo midiático, mas a comunidade de usuários e desenvolvedores tinha de fato potencial, entre outros motivos por conta de sua articulação com movimentos sociais cuja referência básica não era o mercado. Entretanto, as diversas camadas de ferramentas que facilitam ao máximo os relacionamentos, a publicação na web e o empreendedorismo tecnológico têm como consequência a neutralização desse potencial. À medida em que menos pessoas dedicam-se a aprender e dar forma a novas ferramentas de comunicação, e ao mesmo tempo surgem oportunidades rápidas de prestar serviços a um mercado em crescimento, é supostamente natural que haja menos desenvolvimento de tecnologias realmente transformadoras. Quando alguns dos nossos maiores talentos dedicam seu tempo a preencher espaços do mercado comercial, a sociedade tem muito a perder.

Tudo isso aponta para a necessidade de repensar as bases nas quais se situam os projetos e programas de inclusão digital. Historicamente, essas iniciativas partiam de um princípio de compensação. Ou seja, entendiam que as novas tecnologias de informação oferecem oportunidades de inclusão, principalmente por conta da articulação de novas habilidades de comunicação pessoal com um tipo de sociabilidade que poderia subverter hierarquias. Mas essas oportunidades chegavam à sociedade de maneira desequilibrada. Os projetos de inclusão digital propunham-se, então, a oferecer infraestrutura tecnológica àquelas camadas da população que não tinham acesso a tal infraestrutura por seus próprios meios, de maneira a equilibrar a equação. Essa é uma visão que no mínimo deve ser interpretada como conservadora, porque vê a sociedade como estável em torno de construções determinadas - o trabalho, a escola, a comunidade local, a família - e no topo destas construções o digital surgiria como simples aspecto adicional. Ou seja, as pessoas precisariam adaptar-se às novas possibilidades criadas pelas tecnologias para continuarem ocupando o mesmo papel na sociedade. Seriam, assim, mais vítimas do que atores da revolução digital. Entretanto, um dos maiores potenciais da comunicação digital reside justamente na capacidade de engendrar arranjos sociais que escapam a estas configurações conservadoras. Não se trata mais de garantir a manutenção de determinado papel social, e sim de criar novos e inovadores papeis.

Quando surgiram os telecentros, uma de suas características mais relevantes não era o fato de oferecerem mero acesso a computadores ou à internet, mas fundamentalmente sua capacidade de atrair cidadãos a utilizarem novos formatos de espaços públicos. Não somente como transeuntes - aqueles que circulam por um lugar -, mas como membros da sociedade que ocupavam aqueles espaços. E ocupavam espaços cuja função ainda não estava totalmente determinada. Ao contrário de outros espaços públicos - a escola, a biblioteca, a repartição, a praça -, a função objetiva do telecentro não estava clara. Era espaço de formação para o mercado, mas também era espaço de sociabilidade, de formação geral, de experimentação e aprendizado sobre artes. E essa indeterminação pode ter sido justamente o que fomentou o alto nível de inovação que estes espaços possibilitaram ao longo da última década.

O fato de que mais e mais iniciativas de inclusão digital tenham aberto mão dos espaços compartilhados em favor de uma lógica - consumista e individualista, a meu ver - do acesso doméstico à internet parece ser mais um indício negativo das tendências atuais. Somando-se ao alerta feito por Anahuac e à rendição quase total às redes sociais corporativas, o quadro é bastante obscuro. Como fazer para escapar a essas armadilhas?

O telecentro precisa ser repensado. Já passou-se quase uma década e meia desde que eles se estabeleceram como modelo [Ver http://blog.redelabs.org/blog/para-que-serve-um-telecentro]. Hoje em dia, pensar em laboratórios experimentais comunitários enquanto espaços em branco, espaços nos quais novas formas de sociabilidade podem emergir e se desenvolver, parece ser o mínimo. Hacklabs e Makerspaces sugerem novos caminhos, nos quais a apropriação crítica de tecnologias torna-se mais importante do que o mero acesso à rede. O importante é perceber que, se queremos espaços que proponham transformação social efetiva, não podemos nos contentar com uma lógica de ocupação de vagas, de estatísticas de atendimento ou mesmo de mero empreendedorismo comercial. Precisamos pensar nos futuros que queremos criar, e dedicar nosso tempo a criá-los. Voltar a pensar na importância de insistir no livre, no aberto e na cultura ao mesmo tempo questionadora e acolhedora que envolve esses adjetivos.


Felipe Fonseca é coordenador do núcleo Ubalab [http://ubalab.org]. Foi um dos fundadores da rede MetaReciclagem [http://rede.metareciclagem.org]. Vive em Ubatuba/SP, onde organiza o Tropixel [http://tropixel.ubalab.org] e leciona na Escola Técnica Municipal Tancredo de Almeida Neves. Acabou de terminar sua dissertação de mestrado pelo Labjor/Unicamp, focada nos laboratórios experimentais em rede.