Diário do ventre da besta - parte 3

Última parte do meu relato sobre a participação no ISEA, em Albuquerque, setembro do ano passado. Veja também a parte 1 e a parte 2.

 

No café da manhã de sábado, todos os americanos tinham os olhos grudados na imensa TV do salão. Cobertura da campanha presidencial - Romney tinha falado alguma besteira. Encontrei parte da turma brasileira, e logo Teresa nos deu uma carona até o Centro Nacional de Cultura Hispânica (NHCC), que sediaria o Fórum Latinoamericano do ISEA.

É forte essa coisa da identidade "hispânica" naquelas paragens - me pergunto se os estadunidenses chegam a atinar a relação etimológica com "Espanha" ou se já significa uma coisa totalmente diferente. Penso também no pesado legado da política do multiculturalismo, que acaba induzindo as pessoas a se identificarem com alguma "minoria". Engraçado ver em Albuquerque aqueles carrões antigos, conversíveis, guiados por "hispânicos" tatuados, totalmente enquadrados no estereótipo cultural.

O Centro de Cultura Hispânica é grande, bonito, bem estruturado. Salas, auditórios, um pátio amplo com palco debaixo de uma larga árvore que alivia um pouco o calor. Tem uma grande placa do Instituto Cervantes, que infelizmente me fez lembrar dos tropeços do CCE de São Paulo, desaparecido graças às inversões políticas de Madrid. Logo na recepção, Fred Paulino conta que Ganso havia enfartado e estava no hospital. Justo nos EUA, que têm péssima fama na saúde.

Chegamos à sala que sediaria o painel sobre mapeamentos, balões e pipas. Demoramos um pouco para começar, já que haviam armado a tela do projetor justamente na parede onde o sol batia, e não havia jeito de fechar a janela. Lucas Bambozzi, Rodrigo Minelli, eu e Bruno Vianna contamos sobre diferentes projetos no Brasil sobre mapeamento colaborativo e afins. Eu falei sobre "mapeamento experimental".

Depois, circulei um pouco entre os paineis. Assisti a um pedaço da excelente apresentação de Coco Fusco. Eu seria o moderador do painel sobre labs abertos, o primeiro da tarde. Havia mandado alguns dias antes um email para todos os participantes do painel, sugerindo que almoçássemos para alinhar o formato do painel. Dois deles (talvez sem coincidência, os dois mais bem posicionados em instituições estáveis) nem responderam. Almocei com os outros - Gabriel Zea / Camilo Martinez  e Leslie Garcia - nas barraquinhas de comida no quintal do NHCC. Encontramos os outros no algo intimidante auditório principal, cinco minutos antes de começar o painel.

Não gostei do resultado do painel sobre labs. Minha falta de intimidade com os outros dois participantes - um dos quais fez sua fala em espanhol - dificultou um pouco. Fui também flexível demais com o tempo de fala de cada um, deixei todo mundo estourar. E começamos uns 15 minutos atrasados enquanto esperávamos a sala encher depois do almoço - dada a falta de comentários sobre o atraso da nossa primeira sessão pela manhã, não achei que seria um problema -, mas fomos cobrados pontualmente a liberar a sala. Resultado: nenhum debate, quatro falas isoladas, e tensão na saída.

Passei mais algum tempo assistindo a algumas apresentações. Vi o artist talk do Bruno Vianna. Lucas e outros faziam a oficina de balões. Vi pedaços da apresentação do Bill Toledo - um dos remanescentes native code talkers, índios que serviram ao exército estadunidense durante a segunda guerra usando seus próprios códigos para transmitir mensagens cifradas.

Cheguei a combinar com alguns conhecidos de nos encontrarmos mais tarde na microcervejaria Marble, e tomei o ônibus de volta para o hotel. Estava um pouco chateado pelo resultado do painel sobre labs. Talvez também estivesse um pouco abalado por uma soma de coisas. Ainda navegava pelo mal-estar do jet lag. Havia sido temerário nas saídas a pé por uma cidade seca, alta e de sol forte. Além dos cansaços, também me mexeram outros fatores .Me sentia um peixe fora d'água naquela cidade, naquele país e naquele evento. Era a primeira vez que ficava tão longe da minha filha - se precisasse voltar para casa, levaria no mínimo dois dias para chegar. Mais do que tudo, entretanto, acho que me desequilibrou a notícia do enfarte do Ganso, que desenterrou alguns fantasmas do passado que haviam ficado quietos por um par de anos. No começo de dezembro de 2009, eu presenciei o falecimento de um vizinho, já idoso, cujo coração falhou. Alguns dias depois, tive um episódio de ansiedade, e em mais algumas semanas perdi um grande amigo sem ter a oportunidade de dizer adeus. Isso tudo acabou se misturando naquele momento, e minha noite de sábado foi bastante difícil.

Tentei descansar um pouco e não consegui. Acabei saindo a pé até a Marble, bastante tenso, algo ansioso. Tentando sem sucesso encontrar o meu pato na cara a duzentos e cinquenta nós. A cidade também é deserta à noite. Cheguei na Marble muito depois da hora que tinha sugerido ao pessoal. Não encontrei ninguém, fiquei um tempinho por ali ouvindo a banda country e voltei ao hotel. Demorei um tempão para finalmente dormir.

No domingo, estava um pouco melhor. Passei pela biblioteca pública de Albuquerque, onde rolava o painel sobre inclusão digital. Sou suspeito para falar, mas nossos debates sobre isso aqui no Brasil estão muito à frente do que eles conseguem conceber. Só falam em acesso doméstico, empreendedorismo formal, metáfora de rede para falar sobre a sociedade. Não conseguem imaginar novas realidades culturais ligadas às tecnologias de informação. No máximo pensam em tecnologias como compensação, para oferecer oportunidades do cara "virar um cientista" ou "encontrar um emprego". Era mais uma manifestação do multiculturalismo: um dos participantes estava preocupado com o menor acesso de negros à pós-graduação (um debate importantíssimo na minha opinião, mas não tão relevante em um debate sobre inclusão digital). Perdi a paciência bem rápido, se pegasse o microfone ia passar tempo demais desconstruindo. Pulei entre diferentes paineis, não achei nada que me prendesse. Almocei um gigantesco hambúrguer com chá gelado (que vem sem açúcar) em uma lanchonete chamada Q Burger, que tinha quatro grandes TVs transmitindo simultaneamente (e com o som ligado) dois jogos diferentes de futebol americano.

Ao longo da tarde, estava rolando a Downtown Block Party, uma programação meio aberta em dois quarteirões da avenida principal no centro. Estavam por lá alguns "artistas de carros", alguns palcos, uma instalação com instrumentos musicais, alguns estandes de gente falando sobre bancos de sementes, uma escola que organiza cursos e oficinas gambiarrentos, algumas galerias com mostras ligadas ao ISEA, e outras coisas. Um monte de gente se acotovelava para assistir a uma apresentação de low riders, com um monte de carros tunados guiados por hispanos. Tudo muito curioso, mas chamar de "party" pareceu exagero.

Na verdade, ainda à beira da ansiedade, acabei sabotando algumas boas oportunidades naquele domingo. Não me empolguei o suficiente para pagar o ingresso da Mini Maker Faire, nem da apresentação de Laurie Anderson. Não tive disposição para o show dos Dead Kennedys (ok, sem o Jello mas ainda assim certamente divertido). Capotei no hotel.

No dia seguinte, saí atrás de presentes para a pequena (experiência radical: fazer compras em meio às entranhas da besta, e de repente perceber que o shopping center não tem táxis). À tarde, dei mais uma volta e comecei a empacotar as coisas para ir embora no dia seguinte. Ainda recebi mais um convite: me perguntaram se eu não queria ir de carro até Santa Fe para retornar no dia seguinte. Deveria ter aceito, mas não pude. No dia seguinte, embarquei de volta para o Brasil.

Aqueles poucos dias em território estadunidense mexeram bastante comigo. Na próxima vez, vou tratar de devidamente preparar o espírito antes de embarcar. Marcaram também o momento em que decidi que o referencial de colaboração transdisciplinar formal entre arte e ciência tão presente na arte eletrônica definitivamente não funciona como base concreta para o tipo de laboratórios que venho tentado estudar e implementar. Ali existe um aspecto muito presente de apropriação de impulsos desviantes para oxigenar e reafirmar estruturas de poder: muito barulho, muita pose e pouca mudança efetiva. Foi importante perceber isso em um contexto supostamente alternativo no meio dos Estados Unidos: eu já sabia disso tudo, mas lá ficou muito claro que não existe muita saída por aquelas trilhas.

Veja também: mais fotos que fiz durante o ISEA.

PS.: Ganso teve alta, foi muito bem atendido e não precisou pagar nada - os custos foram assumidos pela rede de saúde do estado do Novo México. Aparentemente, aquele está longe de ser o pior lugar dos EUA.