Escrevi um email contando um pouco sobre o projeto Ubalab, suas origens e resultados em potencial. Eu não sabia o quanto o destinatário sabe sobre sistemas livres e afins, então fui um pouco didático. O projeto já deveria ter começado com força total com os recursos que viriam do prêmio de Esporos de Cultura Digital do Ministério da Cultura que ganhamos. Mas as contas do Minc andam complicadas, e isso deve demorar. Por isso, estamos atrás de apoios, parcerias e patrocínios desde já. Se você tem como ajudar, me procure.
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Desde 2002, eu participei de um monte de projetos que estabeleciam o diálogo entre cultura digital e tecnologia livre - começando com software livre, e depois evoluindo também para ideias derivadas dele. Não sei o quanto estás a par do que significa software livre - em resumo, é um ecossistema de produção no qual os desenvolvedores disponibilizam de forma aberta o software que produzem em um regime de direito autoral mais flexível. Sua remuneração não vem do número de cópias do software vendidas, mas de outras possibilidades - customização, prestação de serviço, integração, treinamento, consultoria, pesquisa, etc. É um mercado emergente no mundo inteiro, responsável pelo desenvolvimento de softwares como o servidor web Apache - que roda quase metade dos sites do mundo -, o sistema operacional Linux, o sistema para celulares Android e inúmeros outros.
A conceituação que sustenta o software livre influenciou o desenvolvimento de iniciativas em outras áreas do conhecimento - do MIT Open Courseware à Wikipedia. E também está chegando mais recentemente ao que pode ser chamado de realidade pós-digital. Existe um universo de aplicações de tecnologia a serem desenvolvidas que supõem que a separação entre o que é online e offline fique cada vez mais sutil. São aplicações móveis, realidade aumentada, internet das coisas, fabricação doméstica de objetos 'concretos' a partir de matrizes digitais, etc.
Mas a maior novidade não é tanto o resultado dessa inovação, e sim a forma como ela vem acontecendo. As barreiras de entrada vêm diminuindo radicalmente. Nos EUA existe a 'cena maker': grupos de pessoas inventando na garagem novos usos para as tecnologias que estão cada vez mais disponíveis por aí - mas que diferentemente de outras épocas, estão menos interessados em ficar milionários do que em continuar aprendendo e criando uns com os outros. Na Europa existem dezenas de centros de inovação criados de baixo para cima, que não nasceram dentro das universidades mas sim de grupos auto-organizados de artistas, pesquisadores, ativistas e diletantes em geral interessados em trabalhar juntos e propor uma aproximação do desenvolvimento de tecnologias com a vida cotidiana. Um dos mais importantes desses centros é o Medialab Prado, em Madrid - que tem uma programação intensa de workshops, encontros e exposições de novas tecnologias que reúnem gente do mundo inteiro. É esse tipo de centro que possibilitou o desenvolvimento de coisas como o projeto Arduino - um kit básico de eletrônica que permite que qualquer amador possa criar instalações interativas. Aqui um bom, recentíssimo documentário sobre o Arduino:
http://arduinothedocumentary.org/
De uns dois anos pra cá, eu tenho investigado possíveis articulações entre esse universo do que poderia se chamar de 'artesanato digital' e alguns aspectos das culturas populares brasileiras, em especial a gambiarra e os mutirões. Escrevi sobre como a gambiarra está presente na produção de arte eletrônica brasileira e internacional. Eu acho que existe um horizonte amplo de possibilidades quando a gente incorpora esse espírito de inovação cotidiana com a multiplicidade de possibilidades das novas ferramentas digitais. Mais ainda se levarmos em conta a facilidade (ou melhor, a obsessão) com que as pessoas no Brasil que têm acesso às tecnologias se apropriam delas - a febre brasileira do orkut que antecedeu em alguns anos a febre mundial do facebook, os usuários brasileiros de internet que passam mais tempo online por mês do que usuários de todas as outras nacionalidades - incluindo japoneses e americanos -, etc. Juntando isso tudo com grupos dinâmicos, auto-geridos e que respirem criatividade, temos uma potência de transformação muito grande.
A ideia do projeto aqui em Ubatuba é entrar no cenário dessa cultura digital experimental baseada em licenças livres, em escala local e focada em transformação social. Dialogando com projetos do Brasil todo e de fora (nesses anos eu tive a oportunidade de conhecer gente do mundo inteiro, em especial quando pesquisava laboratórios experimentais em rede). Trazendo gente interessante para produzir coisas por aqui. Buscando formas de criar tecnologia que seja útil para os problemas que são nossos, mas são também universais - a coleta de lixo, a ameaça constante à preservação da mata atlântica, a evasão de talentos para cidades maiores. Em certo sentido, a gente não se enquadra muito no universo tradicional do terceiro setor - não temos um público-alvo definido que sofre de alguma coisa que a gente possa aliviar. A ideia passa longe disso. Queremos é desenvolver novas tecnologias que sejam relevantes não só aqui como em outros lugares. É claro, encontrando talentos locais, desenvolvendo-os, prestando suporte de tecnologia para ONGs e afins. Mas o foco não é "atender a uma comunidade" e sim promover inovação socialmente relevante na fronteira entre cultura, tecnologia, ciência, educação, arte, etc.
Pra isso precisamos também pensar em maneiras de sustentar essa coisa toda, o que aqui no Brasil tem rolado de forma pouco estruturada. O país entrou com destaque nesse cenário a partir do posicionamento do Gilberto Gil, que quando Ministro declarou-se hacker e deu todo apoio à cultura digital livre. Mas pouco foi feito além do (curto) alcance do Ministério da Cultura. Essas novas tecnologias abrem um mundo de novos produtos e serviços (desde coisas semi-artesanais como arte produzida com lixo eletrônico até, por exemplo, sistemas de monitoramento ambiental baseados em hardware livre, ou georreferenciamento distribuído de áreas de risco). Eu acho que a médio prazo essas linhas de pesquisa podem criar maneiras para sustentar-se sozinhas, mas o primeiro passo é sempre o mais longo.
A pergunta que faço: essa coisa toda parece ter algum modelo de negócios que não seja pedir dinheiro pro governo, doação de amigos ou então oferecer visibilidade de marcas via isenção fiscal? Pode existir a possibilidade de configurar um "negócio social" baseado em tecnologias livres, mas ainda não consigo ver como.
Ficou um pouco longo, mas não tem jeito. Tentei ser sucinto. Essa conversa também está relacionada de maneira íntima com um texto que escrevi há pouco tempo:
http://rede.metareciclagem.org/blog/16-01-11/Inovacao-e-tecnologias-livres