Sobre nomenclatura: inovação socioecológica

Publiquei um artigo no medium, propondo o uso da expressão "inovação socioecológica" para construir uma narrativa comum entre diversos projetos:

Inovação Socioecológica

Implodiram-se os manuais que simplificavam as questões do mundo. Não existe um conjunto de 7, 10 ou 12 instruções que traga harmonia entre nós seres humanos, outros seres vivos, e tudo aquilo que nos cerca e a eles. Nem se fossem 37 instruções, ou mesmo 42. O manual não-escrito nunca virá.

Como seguirão vivendo as pequenas coisas que vivem nas camadas superficiais deste grande planeta? Coisas que vivem e (se) alimentam (d)as vidas umas das outras, que vivem e matam umas às outras também, e nisso parecem tornar-se cada vez mais inconscientes, compulsivas e eficientes.

Implodem-se também os mapas do futuro e seus múltiplos ismos. A descrição do cenário é incerta, as rotas conhecidas levam a destinos terríveis. O terreno mesmo se contorce a todo momento. As placas do caminho são trocadas, seja por pilhéria, ignorância ou maldade.

Muitos olhos buscam longe, além dos muros cinzas e das tempestades escuras e dos desertos vazios, e além do próprio nada. Buscam longe, além do horizonte, um indício qualquer de esperança em que se possa confiar. Um indício de que se pode voltar a respirar.

E ainda assim se respira. E se confia. E ainda sem mapas se caminha e passa-se por lindos lugares. E sem manuais se vive, e conectam-se seres em redes, e ama-se ainda mais e de mais diversas formas.

Precisamos perceber que as respostas podem não estar além do horizonte, mas logo ao lado de quem as busca. Do molar ao molecular. Da busca de outros mundos ao reconhecimento da vizinhança. Do inviável ao subestimado. Ali onde menos se espera, ali sim se respira fundo. E se sorri, e se conversa. Vive-se a vida.

Faltam palavras definitivas, é verdade. Palavras que estabeleçam de maneira exata e inconteste o que se deseja e expliquem bem o que se faz. É necessário entretanto aceitar essa falta de clareza, justamente porque diversos são os desejos e muitas são as visões de mundo. Uma expressão qualquer será algo para um/a e nada para outrx, ou ainda outra coisa no meio-termo. Trata-se assim de encontrar termos ainda que imperfeitos e quiçá instáveis, temporários, mas pontualmente suficientes. Que não sejam descrições conclusivas, mas pontes entre os diferentes entendimentos possíveis. Que em sua existência tornem-se pontos de cooperação entre perspectivas diversas. Termos em disputa, instrumentos de luta. Objetos-fronteira, interpretados de forma diversa a depender de quem olha, mas ainda assim dotados de potência e existência. Ou até de múltiplas existências, até mais existentes que outros objetos.

 

Este texto traz uma proposta: de que tudo aquilo que vai construir um mundo melhor está já à mão. São saberes, pontos de vista e tradições. São ferramentas, métodos e rituais. O mundo melhor, entende-se aqui, será mais justo, mais diverso, mais includente, mais sustentável. E o que não está à mão é por definição inalcançável, logo não deveria tirar nosso sono ou fôlego.

Este texto traz uma proposta: de que tudo aquilo que vai construir um mundo melhor está já à mão.

O outro mundo possível, e também o mundo melhor viável, vêm sendo costurados por incontáveis mentes, costas e mãos. Em cada lugar em que transparecem as inevitáveis contradições e inconsistências da história central do mundo contemporâneo, existe gente criando maneiras de superá-las. Mas onde estão essas experiências? Sendo assim pulverizadas, e atentas a suas próprias questões, teriam elas uma constituição coletiva? Por vezes são descartadas como triviais, ou por demais mundanas para chamar a atenção. Frequentemente situam-se a uma grande distância das narrativas épicas do mundo contemporâneo. E talvez seja essa discrição uma de suas mais importantes características.

“(…) Minha avó, ela era transgressora.
No propósito ela me disse que até as mariposas gostavam
de roçar nas obras verdes.
Entendi que obras verdes seriam aquelas feitas no dia.
Daí que também a vó me ensinou a não desprezar as coisas
desprezíveis
E nem os seres desprezados. ” (Obrar, Manoel de Barros)

Existem pessoas que dedicam-se justamente a observar essas práticas novas e antigas, e trabalham para criar uma narrativa que as identifique, aproxime, impulsione e multiplique. John Thackara, escritor britânico que vive no sul da França, estima em milhões no mundo todo a quantidade de grupos dedicados a ações de mudança para um mundo melhor. São iniciativas ultralocais e enraizadas, mas ao mesmo tempo internacionais e hiperconectadas, como ele enumera sem esgotar (aqui em tradução livre):

“(…) seus números incluem anjos da energia, magos dos ventos, e administradores de reservatórios hídricos. Há os planejadores biorregionais, historiadores ecológicos e guardas-florestais comunitários. Junto com removedores de represas, restauradores de rios e coletores de chuvas, existem os agricultores urbanos, banqueiros de sementes, e mestres da conservação. Você vai encontrar desmanchadores de construções, recondicionadores de prédios de escritórios, e levantadores de celeiros. Há os pintores naturais e os encanadores verdes. Há os renovadores de estacionamentos de trailers, e corretores de terras de uso compartilhado. O movimento envolve recicladores de computadores, remixadores de hardware, e reutilizadores têxteis. Ele se estende a designers de moedas locais. Há os doutores comunitários. E cuidadores de idosos. E professores ecológicos.” (Thackara)

A percepção parece fazer sentido. Também nas cidades brasileiras esses temas têm surgido. Aqui em Ubatuba, por exemplo, há os bioconstrutores e os permacultores, algumas comunidades tradicionais que sempre fizeram aquilo que hoje se chama agrofloresta, os inventores vernaculares, e ainda as redes de alimentos orgânicos e as moedas sociais, entre tantos outros exemplos. E mesmo em um lugar relativamente pequeno, no qual muitos dos participantes se conhecem pessoalmente, é difícil descrevê-los de forma coletiva. Como então falar sobre essas iniciativas? Existe um nome que as abrange e define?

No espírito da primeira metade deste texto, propõe-se aqui um objeto-fronteira — uma construção que permita falar sobre esses assuntos, entre grupos que adotam vocabulários distintos ou mesmo conflitantes. Uma descrição assumidamente imperfeita e instável, mas que seja significativa. E que em cuja própria disputa de significado se possam trilhar caminhos profícuos.

A opção feita aqui é tratar todas essas iniciativas como manifestações de “inovação socioecológica”. Um termo altamente ambíguo, com certeza. Em particular por falar em “inovação” para construir esse objeto-fronteira, e convém reconhecer algumas das implicações de tal termo. É necessário, por óbvio, ignorar o imenso volume de besteiras sobre inovação que frequenta massivamente as prateleiras centrais das livrarias comerciais. Esse recorte costuma oscilar entre os compêndios de obviedades, a criação de fórmulas de impossível aplicação (porque criadas como espelhos retrovisores bitolados para olhar processos que não são lineares) ou ainda um roupagem particular dos manuais de autoajuda. Também não se trata da inovação como “destruição criativa” Schumpeteriana, cujo uso superficial (e equivocado) propõe a instabilidade sistêmica para promover crescimento econômico com baixo risco político em economias capitalistas industriais e pós-industriais.

Ricardo Ruiz e Emmanuel Costa contam que, durante quase dois mil anos, o termo “inovação” tinha uma conotação notadamente negativa, descrevendo práticas que iam “contra a tradição e o costume da maioria”. Foi só recentemente que o termo inovação transformou-se, foi descontestado e assimilado pelo establishment:

“O século XX fez da inovação uma ideologia, ou um termo não contestado: a inovação adquiriu uma conotação dominantemente (e quase exclusivamente) positiva. A inovação tornou-se uma prática não controversa, um significante institucionalizado e um princípio ordenante e estruturante do pensamento e da ação.” (Ruiz e Costa, no prelo)

Lee Vinsel e Andrew Russell, professores e pesquisadores estadunidenses, identificam um momento crucial desta transformação (em tradução livre):

“Os destinos das nações em lados opostos da Cortina de Ferro ilustram boas razões que levaram ao crescimento da inovação como palavra da moda e conceito organizador. Ao longo do século XX, as sociedades abertas que celebravam a diversidade, a novidade e o progresso tinham melhores resultados do que aquelas fechadas que defendiam a uniformidade e a ordem.
No fim dos anos 1960, frente à Guerra do Vietnã, à degradação ambiental, aos assassinatos de Kennedy e [Martin Luther] King, e a outras decepções sociais e tecnológicas, tornou-se mais difícil crer no progresso moral e social. Para tomar o lugar do progresso, a ‘inovação’, um conceito menor e moralmente neutro, cresceu. A inovação oferecia uma maneira de celebrar as conquistas de uma era de alta tecnologia sem esperar muito delas em relação a melhorias morais e sociais.” (Vinsel e Russell)

A inovação socioecológica que se propõe aqui não se coloca como uma mera fatia dessa inovação despolitizada e assimilada. Pelo contrário, pretende disputar significado e expandir o universo de referências e motivações para a inovação. Primeiramente minando seus instrumentos de valoração. O mercado é reconhecido como apenas uma entre diversas maneiras de atribuir valor ao trabalho e às ideias, e de mediar suas relações. Ele pode ser utilizado em partes da inovação socioecológica, mas não será sua única medida. A perspectiva socioecológica orienta-se de modo geral à construção de um mundo melhor, e esse sentido exige pensar em formas mais complexas e inteligentes do que a mera redução de tudo a números. Menos PIB, mais índices de felicidade — bruta, líquida, etérea e onírica!

Chamar de inovação socioecológica aquele conjunto amplo de práticas mencionadas anteriormente não virá sem problemas. Há óbvias limitações: simplificação de questões complexas, recusas legítimas de ordem cultural ou ideológica, medo da latente submissão ao discurso dominante e à lógica de mercado. Ainda assim, é em busca de criar pontes entre grupos tão diversos e tão dispersos que pode ser relevante como objeto-fronteira — compreendido e mobilizado de formas também diversas e dispersas.

Inovação socioecológica como eixo de reflexão, ação e propósitos. Estamos começando a construir uma plataforma para aproximar essas práticas. Jogo a bola ao ar. Será que alguém devolve?